Não, não é na Amazônia, nem no Pantanal. É na região de Curitiba, a menos de 100 km da capital, no vale do rio Açungui (ou Assungui, segundo o ICMBio), o primeiro afluente de alguma importância do rio Ribeira do Iguape, que nasce na Serra Geral do Paraná e corre para o litoral sul de São Paulo, a nordeste. O vale do Açungui abriga um dos remanescentes da Mata Atlântica mais bem preservados no sul do Brasil, sendo considerado uma das áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade pelo IBAMA. Mas talvez por pouco tempo.
Desde as suas nascentes ao sul da bacia, próximo ao distrito de Bateias, em Campo Largo, o rio Açungui desce em corredeiras, cachoeiras e piscinas naturais encaixado em um vale fechado, onde as margens íngremes cobertas pela vegetação densa dificultam muito o acesso ao rio. Por isso mesmo é no vale em que se encontra grande parte do que sobrou da Mata Atlântica no Paraná, bem como a sua biodiversidade, animais, plantas e insetos. E também por isso a bacia do rio Açungui é considerada como um futuro manancial de abastecimento de água para a Região Metropolitana de Curitiba.
A bacia, neste trecho, tem uma topografia muito acidentada e o acesso é difícil, as estradas ruins e como consequência a região tem uma baixíssima densidade populacional e o pior índice de desenvolvimento humano do Paraná e de São Paulo (e do país). A agricultura mecanizada é impossível e há poucas alternativas de atividade econômica. A exceção fica por conta dos reflorestamentos de pinus e eucalipto que ocuparam (e devastaram) um pouco mais do que os topos dos morros, como pode ser visto nas fotos. Estes alimentam as indústrias de papel situadas mais ao norte, em Jaguariaiva e Telêmaco Borba, e uma parte, como combustível para algumas fábricas de cal, na região de Itaperuçu, Colombo e Rio Branco do Sul. Também é feita a exploração do calcário, cujas jazidas estão situadas coincidentemente onde há uma incidência importante de cavernas e grutas, contribuindo ainda mais para a destruição do patrimônio natural do Açungui.
Já mais ao Norte, próximo a Ponta Grossa e Castro, o que floresceu foi a agricultura extensiva – monoculturas de grãos. Ali pode ser visto que os remanescentes da Mata Atlântica e dos Campos Gerais praticamente desapareceram, deixando alguns poucos vestígios nas encostas mais íngremes ao sul. E no fundo dos vales do Açungui e do ribeira do Iguape.
Mas também este pouco que sobrou está com os dias contados. Há a previsão de instalação de nove pequenas centrais hidrelétricas no rio, que de pequenas só tem o nome. Com barragens previstas de mais de 40 m de altura, os reservatórios que serão criados vão, inevitavelmente, modificar as condições naturais de tal forma que tudo aquilo que existe hoje, e ainda resiste, será perdido para sempre. Todo o remanescente da Mata Atlântica, juntamente com sua fauna, flora, paisagens naturais, os peixes migratórios, as corredeiras, as piscinas naturais, tudo isso será destruído, inundado e deixará de existir.
O potencial hidrelétrico do rio Açungui já foi estudado desde meados do século passado, mas tendo em vista as dificuldades descritas e com um potencial relativamento baixo em relação a outros rios (como o Iguaçú, por exemplo) não se construiram barragens. Isso também contribuiu para que as áreas remanescentes da Mata Atlântica continuassem preservadas.
Vale notar que quase todo esse remanescente se encontra protegido por legislação federal. Seja pela proximidade ao rio ou pelas declividades acentuadas, essas áreas são APPs – Áreas de Preservação Permanente, conforme o Código Florestal (tanto o antigo como o de 2012).
É difícil aceitar a lógica desse “desenvolvimento econômico” do rio Açungui. Tanto a expansão agroindustrial como a hidrelétrica exibem um padrão predatório que refletem uma visão míope da exploração dos “ativos regionais” representados pelos recursos naturais e serviços ambientais proporcionados pelas condições naturais da bacia. De um lado a remoção da cobertura florestal original, que garantiu um bom solo nas primeiras colheitas, já não existe para continuar a proporcionar a original fertilidade, exigindo mais e maiores investimentos para garantir a produtividade, e mais fertilizantes, calcário, etc. De outro lado, o reflorestamento também causa uma exposição do solo que facilita, e até incentiva, a erosão e o assoreamento das nascentes dos rios, comprometendo a vida útil dos reservatórios previstos. Os fertilizantes dessas atividades de monocultura vão contribuir enormemente para a eutrofização (“apodrecimento”) dos grandes volumes de água nesses mesmos reservatórios, tornando a sua utilização muito mais cara e arriscada.
De um ponto de vista menos míope, olhando para o futuro, talvez o ativo econômico (ou o “capital”, se preferirem assim) mais importante do rio Açungui seja justamente suas corredeiras, margeadas por uma floresta densa e preservada ao longo de quilômetros e águas ainda não poluídas (ao menos não visualmente). Hoje esses ativos tem sido utilizados, com baixíssimo impacto, por pescadores e apaixonados pelos esportes radicais, como rafting, trekking, montanhismo e espeleologia, que tem convergido para a região cada vez mais, principalmente pela crescente escassez desse tipo de natureza.
Eu, como membro do CONDUMA e representando entidades ambientalistas, temos colocado restrições à construção de barragens no rio Açungui, procurando evitar a perda desse capital natural não só da sociedade campo-larguense, mas de todo o sul do Brasil. Mas até quando vamos conseguir controlar essa devastação?